Não me cuido, nunca me cuidei, se bem que estime os médicos e a medicina. Demais, sou extremamente supersticioso, o bastante, em todo caso, para respeitar a medicina (sou bastante instruído: poderia então não ser supersticioso, mas sou). Não! se não me trato, é pura maldade de minha parte. Não sabereis certamente compreender. Pois bem! eu compreendo. Não poderei evidentemente explicar-vos em que errei, agindo tão malvadamente: sei muito bem que não são os médicos que eu incomodo, recusando-me a tratar-me. Não engano senão a mim mesmo; reconheço-o melhor que ninguém. Entretanto, é mesmo por malvadez que não me trato. Sofro do fígado! Tanto melhor! E tanto melhor ajuda se o mal piora.
   (...) Fui funcionário, pedi demissão . Fui um funcionário muito ruim. Era grosseiro e tinha prazer em sê-lo. Podia bem me compensar desta maneira, pois que eu não aceitava gorjetas (esta brincadeira não tem graça mas não a suprimirei. Escrevi-a crendo que teria espírito; não a apagarei, entretanto expressamente; porque queria me dar ares de importância). Quando os solicitantes em busca de informaçoes se aproximavam da mesa diante da qual eu estava sentado, eu rangia os dentes; sentia uma volúpia indizível, quando conseguia causar-lhes algum aborrecimento. Conseguia-o quase sempre. Eram geralmente pessoas tímidas, acanhadas. Solicitantes, pois quê!(...)
   (...) Ora sabeis senhores, o que excitava sobretudo minha raiva, o que a tornava particularmente vil e estúpida? É que eu me inteirava vergonhosamente, mesmo quando a minha bílis se esparramava violentamente, que eu não era mau homem, no fundo, não era mesmo um homem azedo, e que tomava gosto, muito simplesmente, em assustar os pardais. Tenho espuma na boca; mas, trazei-me uma boneca, oferecei-me uma chávena de chá bem doce, e é provável que eu me acalme; sentir-me-ei mesmo muito comovido. É verdade que, mais tarde, morderei os punhos de raiva, e de vergonha perderei o sono durante alguns meses. Sim, eu sou assim.