sábado, 22 de agosto de 2009

Dostoievski humano

Eu sou um homem doente... Sou um homem malvado. Sou um homem desagradável. Creio que tenho uma doença do fígado. Aliás, não compreendo absolutamente nada da minha moléstia e não sei mesmo exatamente onde está o mal.
Não me cuido, nunca me cuidei, se bem que estime os médicos e a medicina. Demais, sou extremamente supersticioso, o bastante, em todo caso, para respeitar a medicina (sou bastante instruído: poderia então não ser supersticioso, mas sou). Não! se não me trato, é pura maldade de minha parte. Não sabereis certamente compreender. Pois bem! eu compreendo. Não poderei evidentemente explicar-vos em que errei, agindo tão malvadamente: sei muito bem que não são os médicos que eu incomodo, recusando-me a tratar-me. Não engano senão a mim mesmo; reconheço-o melhor que ninguém. Entretanto, é mesmo por malvadez que não me trato. Sofro do fígado! Tanto melhor! E tanto melhor ajuda se o mal piora.
(...) Fui funcionário, pedi demissão . Fui um funcionário muito ruim. Era grosseiro e tinha prazer em sê-lo. Podia bem me compensar desta maneira, pois que eu não aceitava gorjetas (esta brincadeira não tem graça mas não a suprimirei. Escrevi-a crendo que teria espírito; não a apagarei, entretanto expressamente; porque queria me dar ares de importância). Quando os solicitantes em busca de informaçoes se aproximavam da mesa diante da qual eu estava sentado, eu rangia os dentes; sentia uma volúpia indizível, quando conseguia causar-lhes algum aborrecimento. Conseguia-o quase sempre. Eram geralmente pessoas tímidas, acanhadas. Solicitantes, pois quê!(...)
(...) Ora sabeis senhores, o que excitava sobretudo minha raiva, o que a tornava particularmente vil e estúpida? É que eu me inteirava vergonhosamente, mesmo quando a minha bílis se esparramava violentamente, que eu não era mau homem, no fundo, não era mesmo um homem azedo, e que tomava gosto, muito simplesmente, em assustar os pardais. Tenho espuma na boca; mas, trazei-me uma boneca, oferecei-me uma chávena de chá bem doce, e é provável que eu me acalme; sentir-me-ei mesmo muito comovido. É verdade que, mais tarde, morderei os punhos de raiva, e de vergonha perderei o sono durante alguns meses. Sim, eu sou assim.

Algumas passagens abertas

... inicialmente o passado é apenas uma sucesso de angústias e prazeres vulgares a que o tempo, novos anseios e novas angústias outorgam-lhe um prestígio retroativo.
Do benedetti in memorian

... o que vai acontecer com o elefante? Vai ser visto, aplaudido e depois esquecido, assim como tudo mais na vida, aliás a vida é isso, triunfo e olvido.
Do mago quase in memorian

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Membrana

Em cada bala de raspão biológica a que todos os dias somos atingidos ou preservados, de vírus, bactérias assassinas, cânceres que nos corroem por dentro, e que com uma inefável sensação de alívio pouco cristã mas completamente humana percebemo-nos vivos... ainda. Como diriam "o pulso ainda pulsa".
O filho outro dia comentava sobre um pé alheio graciosamente deformado no sinal com um "Ufa, escapei, pai" o sentimento nobre de escapar do acaso. Estar continuamente apenas fazendo isso, escapando e regojizando-se com a sorte lotérica de safar-se de maus bocados patológicos. Outro ponto para a religião que vem ao encontro desse nosso desejo simplificador de tentar dar ordem ao caos (e esse é o começo de deus no gênesis se não me falha a memória) relutando em aceitar a realidade do mesmo acaso na vida.
Aceitá-lo é inicialmente aterrorizante mas depois confortador, tanto quanto a idéia que uma força sobrenatural tem o poder (e o tempo livre) de poupar-nos de encefalopatias, síndromes alemãs e outras coisitas más.
E dentro de tudo isso, efetivamente o quê, e não apenas quem somos nós. Afora o mundo paralelo inconsciente, de sintaxe tão pouco compreendida, revestido de mitos e obscuridades, será o próprio corpo palpável a representação física do que somos? Basta uma injeção de qualquer substância natural ou sintética para que não nos sejamos mais. Mais potássio, menos dopamina, uma pitada a mais de hormônio numa hora imprópria e voilá... tudo se foi.
Incontáveis exemplos diários demonstram as possíveis impurezas do metal de que somos forjados no constante bater do martelo na bigorna do tempo, da jazida de ferro misturada, do fogo em temperatura além ou aquém do necessário ou simplesmente do braço com força insuficiente para dar tempera nosso corpo.
Sacos de produtos químicos em constante luta pela estabilidade. E resta pouco conforto com esse acaso que não tem nada de cruel conquanto apenas aleatório a não ser estar simplesmente vivo. E onde fica a alma em tudo isso?