domingo, 28 de junho de 2009

humanidade de assis


Infelizmente me parece que nascemos com um certa quantidade de passagens machadianas como as do almocreve (palavrinha ainda usada por saramago) ou do Padre Chagas embutidas na nossa programação. Nos imagino porém capazes de transcender a fatalidade do comportamento humano com algo para além do dogma religioso e dos anseios metafísicos tão universais.

Uma passagem cotidiana pode refletir exatamente o tema:

"Terça-feira, daquelas ordinárias, buscando o filho no colégio (sem parar em fila dupla, segundo o pai do pai o único dogma religioso que deveríamos obedecer") e no meio da caminho parar numa esquina como tantas outras da cidade pobre e mutilada.
Lindo menino no banco de trás, protegido, climatizado, alimentado, ansiado, (mal) educado, encara a realidade de um lindo menino fora do carro, esfarrapado, faminto, de olhos esperançosos que mal alcança o vidro, observado de 'reojo' pela mãe (?) sentada na calçada ao fundo e de cabelos cuidadosamente destruídos. Diálogo (desculpem o plágio da estrutura mas ela funciona).

Filho, porque não dá teu carrinho pro menino, ele iria gostar tanto de um presente assim...
Mas pai esse carrinho é meu! Eu sei, mas tu tens tantos carrinhos, e esse ainda é velho! Mas é meu brinquedo! Mas ele não tem nenhum! Pai, amanhã eu trago outro carrinho pra ele...

Sinal que abre, esperança que se desvanece, alivio machadiano no filho que escapa da partilha e o pai tenta ainda filosoficamente plantar a semente da caridade e do desprendimento que tampouco cultivou mas que com alguns mestres (paulo e alexandre) pretende desenvolver.

Dois dias depois a cena se repete como uma prova de fé na humanidade, mesmo sinal, mesmos personagens, mesmo carrinho em pauta:

Filho, olha o menino de ontem (tempo da cabeça dele), agora é tua chance de dar o carrinho! Mas pai eu não quero dar meu carrinho! Mas cara a gente conversou, tu tem muito carro e disse que iria dar outro dia, o dia é hoje! Não pai, não quero! E agora, ele vai ficar sem nada? Não pai, quando eu chegar em casa (ganhando tempo para que o semáforo o libere de tantas provações urbanas) vou quebrar meu porquinho e dar pra ele 5 'dinheiros'... Olha, eu vou cobrar amanhã, viu? Tá bom pai, vou dar 4 'dinheiros' pra ele... vou quebrar o porco e tirar (pausa pensativa e literária )...3 'dinheiros' e ele vai ficar muito feliz!

Bom, não é preciso comentar que o porquinho continua intacto e recemente o pai descobriu que o dito carrinho, apesar de surrado, tinha nobre origem: fora achado pelo filho, esquecido numa livraria por outro protegido urbano e portanto "aquisição" sua... Motivo mais que eloquente para não tê-lo dado de bandeja à esperança."

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