O que nos faz ter alma? Parafraseando Descartes, o simples motivo de pensar sobre isso, ou seja, nossa consciência é mãe da "existência" mesmo que seja entre aspas.
  A religião nos coloca em posição de superioridade em relação aos demais animais, por termos alma (e por tabela na verdade por sermos racionais) e quando confrontada com a impossibilidade de suas idéias metafísicas (deus, sobrenatural, concepção virginal, ressureição, etc) diz simplesmente que tudo é questão de fé, que está além da nossa razão conhecer tais desígnios!
   Mas então não é a razão a causa de nossa predileção "divina"? Ou seja, pra sermos beneficiados por termos cérebros desenvolvidos nós aceitamos, mas para usá-los e investigar todas as lacunas (ainda) inexplicadas do universo temos de abrir mão da consciência e simplesmente acreditar, ter fé... paradoxo inconciliável
domingo, 15 de novembro de 2009
quinta-feira, 12 de novembro de 2009
Pai no céu (parte I)
Acreditava que não precisaria mais meter-me na lama pegajosa entre a arbitrariedade da crença e imaturidade científica, estando portanto incólume aos apelos crédulos de um lado e a diatribe incrédula de outros. Não, não, ainda não me consenti tão evoluido a ponto de não me deleitar um pouco com o sangue que me ferve ao portar um cérebro e um polegar opositor.
    A dúvida e a tentação ao me envolver numa disputa improfícua, somados a uma filosofia amorosa , me tiraram do pântano e do remordimento interno ao não crer. E então a imparável atividade cerebral e a contemplaçao do absurdo somam-se, e me arrastam mais uma vez aos postos de luta.
   Deus existe sim! Se pensamos que existe, logo existe. Apenas aí e em nenhuma nuvem mais.
   Produto de nossas necessidades, de nosso desconforto, de ansiedades e medos ancestrais, e de uma falta crucial, esta idéia (das mais brilhantes, duradouras, cruentas e falaciosas que já tivemos) não nos larga a tempos e temo, contrariando o otimismo freudiano, não nos deixará por sua eficiência lacunar e consoladora. Infelizmente.
   Das religioes ligadas aos cultos da natureza e polimórficas, das tribos da idade da pedra, com sua coleta incessante dos frutos e da incerteza da caça, essa criaçao veio a princípio buscar entender e pedir proteçao aos elementos mais imediatos do entorno natural, da relaçao intrínseca com a mãe-natureza (muitas vezes uma madrasta) indomada que nos matava tão facilmente, sempre associada a figura feminina (amparada em ídolos pujantes de fertilidade) as matriarcas por excelencia. O imponderável era simplesmente abrumador, nosso vizinho constante, sem controle e incerto, a única dádiva era a vida simplesmente, concretizada pela mulher. 
segunda-feira, 7 de setembro de 2009
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
mon pére
Espero que o dia em que este velho não seja mais o mesmo, tenhas paciência e me compreendas.E quando deixar cair comida sobre a minha camisa e esquecer como se faz o laço no atacador do meu sapato, tenhas paciência comigo e lembra-te das horas que passei ensinando-te essas mesmas coisas.Se quando conversares comigo eu repetir as mesmas histórias, não me interrompas e escuta-me.Quando eras pequeno, para que dormisses, tive de contar milhares de vezes as mesmas historias até tu fechares os teus olhinhos.Quando estivermos reunido e sem querer fizer as minhas necessidades, não fiques com vergonha.Espero que compreendas que não tenho culpa disso, pois já não as posso controlar. Pensa quantas vezes pacientemente, troquei as tuas roupas para que tivesses sempre limpo e cheiroso.Lembra-te que fui eu quem te ensinou tanta coisa...Comer , vestir e como enfrentar a vida tão bem como hoje o fazes. Isso é o resultado do meu esforço e da minha perseverança.Se em algum momento quando conversarmos eu esquecer-me do que estavamos a falar, tem paciência comigo e ajuda-me a lembrar.Talvez a unica coisa importante para mim naquele momento, seja o facto de te ver perto de mim e dando-me atenção e não o que falávamos.Se alguma vez eu não quiser comer,espero que saibas insistir com carinho assim como fiz contigo.Espero que compreendas que com o tempo não terei dentes fortes nem agilidade para engolir.E quando as minhas pernas falharem por estarem tão cansadas e eu não conseguir mais equilibrar-me...Com ternura dás-me a tua mão para me apoiar, como eu o fiz quando começas-te a caminhar com as tuas perninhas tão frageis.Se algum dia me ouvires dizer que não quero mais viver, não te aborreças comigo.Algum dia entenderás que isto não tem a ver com o teu carinho ou com quanto te amo.Espero que compreendas que é dificill ver a vida abandonando aos poucos o meu corpo, e que é duro admitir que já não tenho o mesmo vigor para correr ao teu lado.Sempre quis o melhor para ti, e sempre me esforcei para que o teu mundo fosse sempre mais confortavel, mais belo, mais florido.E até quando eu me for,construirei para ti outra rota em outro tempo mas estarei sempre contigo e zelando por ti.Não te sintas triste ou impotente por me veres assim.Não me olhes com cara de dó.Dá-me apenas o teu coração.Compreende-me e apoia-me, como eu fiz quando começaste a viver. Isso me dará forças e muita coragem.Da mesma maneira que te acompanhei no inicio da tua jornada, peço-te que me acompanhes para terminar a minha.Trata-me com amor e paciência, e eu te devolverei sorrisos e gratidão, com imenso amor que sempre tive por ti ...
mon fille
Close your eyes,
Have no fear,
The monsters gone,
He's on the run and your daddy's here,
Beautiful,Beautiful, beautiful,Beautiful Boy,
Before you go to sleep,
Say a little prayer,
Every day in every way,
It's getting better and better,
Beautiful,Beautiful, beautiful,Beautiful Boy,
Out on the ocean sailing away,
I can hardly wait,
To see you to come of age,
But I guess we'll both,
Just have to be patient,
Yes it's a long way to go,
But in the meantime,
Before you cross the street,
Take my hand,
Life is just what happens to you,
While your busy making other plans,
Beautiful,Beautiful, beautiful,Beautiful Boy,
Darling,Darling,Darling Leo.
sábado, 22 de agosto de 2009
Dostoievski humano
Eu sou um homem doente... Sou um homem malvado. Sou um homem desagradável. Creio que tenho uma doença do fígado. Aliás, não compreendo absolutamente nada da minha moléstia e não sei mesmo exatamente onde está o mal.
   Não me cuido, nunca me cuidei, se bem que estime os médicos e a medicina. Demais, sou extremamente supersticioso, o bastante, em todo caso, para respeitar a medicina (sou bastante instruído: poderia então não ser supersticioso, mas sou). Não! se não me trato, é pura maldade de minha parte. Não sabereis certamente compreender. Pois bem! eu compreendo. Não poderei evidentemente explicar-vos em que errei, agindo tão malvadamente: sei muito bem que não são os médicos que eu incomodo, recusando-me a tratar-me. Não engano senão a mim mesmo; reconheço-o melhor que ninguém. Entretanto, é mesmo por malvadez que não me trato. Sofro do fígado! Tanto melhor! E tanto melhor ajuda se o mal piora.
   (...) Fui funcionário, pedi demissão . Fui um funcionário muito ruim. Era grosseiro e tinha prazer em sê-lo. Podia bem me compensar desta maneira, pois que eu não aceitava gorjetas (esta brincadeira não tem graça mas não a suprimirei. Escrevi-a crendo que teria espírito; não a apagarei, entretanto expressamente; porque queria me dar ares de importância). Quando os solicitantes em busca de informaçoes se aproximavam da mesa diante da qual eu estava sentado, eu rangia os dentes; sentia uma volúpia indizível, quando conseguia causar-lhes algum aborrecimento. Conseguia-o quase sempre. Eram geralmente pessoas tímidas, acanhadas. Solicitantes, pois quê!(...)
   (...) Ora sabeis senhores, o que excitava sobretudo minha raiva, o que a tornava particularmente vil e estúpida? É que eu me inteirava vergonhosamente, mesmo quando a minha bílis se esparramava violentamente, que eu não era mau homem, no fundo, não era mesmo um homem azedo, e que tomava gosto, muito simplesmente, em assustar os pardais. Tenho espuma na boca; mas, trazei-me uma boneca, oferecei-me uma chávena de chá bem doce, e é provável que eu me acalme; sentir-me-ei mesmo muito comovido. É verdade que, mais tarde, morderei os punhos de raiva, e de vergonha perderei o sono durante alguns meses. Sim, eu sou assim.  
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notas do subsolo dostoievski homem hipocondria
Algumas passagens abertas
... inicialmente o passado é apenas uma sucesso de angústias e prazeres vulgares a que o tempo, novos anseios e novas angústias outorgam-lhe um prestígio retroativo.
Do benedetti in memorian
... o que vai acontecer com o elefante? Vai ser visto, aplaudido e depois esquecido, assim como tudo mais na vida, aliás a vida é isso, triunfo e olvido.
Do mago quase in memorian
segunda-feira, 17 de agosto de 2009
Membrana
Em cada bala de raspão biológica a que todos os dias somos atingidos ou preservados, de vírus, bactérias assassinas, cânceres que nos corroem por dentro, e que com uma inefável sensação de alívio pouco cristã mas completamente humana  percebemo-nos vivos... ainda. Como diriam "o pulso ainda pulsa".
       O filho outro dia comentava sobre um pé alheio graciosamente deformado no sinal com um "Ufa, escapei, pai" o sentimento nobre de escapar do acaso. Estar continuamente apenas fazendo isso, escapando e regojizando-se com a sorte lotérica de safar-se de maus bocados patológicos. Outro ponto para a religião que vem ao encontro desse nosso desejo simplificador de tentar dar ordem ao caos (e esse é o começo de deus no gênesis se não me falha a memória) relutando em aceitar a realidade do mesmo acaso na vida.
     Aceitá-lo é inicialmente aterrorizante mas depois confortador, tanto quanto a idéia que uma força sobrenatural tem o poder (e o tempo livre) de poupar-nos de encefalopatias, síndromes alemãs e outras coisitas más. 
    E dentro de tudo isso, efetivamente o quê, e não apenas quem somos nós. Afora o mundo paralelo inconsciente, de sintaxe tão pouco compreendida, revestido de mitos e obscuridades, será o próprio corpo palpável a representação física do que somos? Basta uma injeção de qualquer substância natural ou sintética para que não nos sejamos mais. Mais potássio, menos dopamina, uma pitada a mais de hormônio numa hora imprópria  e voilá... tudo se foi. 
    Incontáveis exemplos diários demonstram as possíveis impurezas do metal de que somos forjados no constante bater do martelo na bigorna do tempo, da jazida de ferro misturada, do fogo em temperatura além ou aquém do necessário ou simplesmente do braço com força insuficiente para dar tempera nosso corpo.
     Sacos de produtos químicos em constante luta pela estabilidade. E resta pouco conforto com esse acaso que não tem nada de cruel conquanto apenas aleatório a não ser estar simplesmente vivo.   E onde fica a alma em tudo isso?
segunda-feira, 20 de julho de 2009
domingo, 12 de julho de 2009
Dogmas
1. Nunca soltei a vossa prancha, ela é vosso salva-vidas
2. Estai sempre atento ao mar para não serdes surpreendido pelas ondas.
3. Ajudai aos outros quando no mar estiverdes.
4. Lavai e cuidai da vossa prancha, ela é vosso instrumento de trabalho.
5. Diverte-se com o surf, não levai como pessoal a injúria feita pelas ondas.
6. Comparte sempre vossa prancha com o amigo que não possui.
7. Observai sempre o vosso limite, não o ultrapassei sob pena de vos perderes.
8. Melhorai vosso desempenho observando ao próximo.
9. Protegei vosso corpo contra o sol e alongai vossos músculos, eles não falhar-te-ão.
10. Pegai o maior número de companheiras possíveis, elas serão vossa alegria e saciarão tua sede.
sábado, 11 de julho de 2009
humanidade de assis 2
Um outro encontro urbano entre realidades cada vez mais distantes, semáforo encarnado e o olho do filho que tudo vê, descobre na fauna do asfalto a espécime mutiladus mendicantis, um pé torto mal-nascido lhe habilita:
Uma esmola, que deus lhe abençoe! Desculpe amigo mas agora não tenho... (questo é vero)
O filho olha a cena e comenta:
Pai, o que ele tem no pé? Filho, ele nasceu assim com os pés deformados e não pode andar direito, por isso pede no sinal. 
Momento de reflexão, neurônios bem pequenos trabalhando e um tanto de humanidade latindo pra sair, e veio em forma de sentença que se anunciou bruta:
Ufa pai, ahh, ainda bem que eu nasci direito!
Padre Chagas nos ensinou idéias enternecedoras, que não fazemos valer em sã consciência a miséria alheia, e tão humano quanto negar a todo instante a invalidez dessa máxima é, para além disso, sentirmo-nos extremamente aliviados ao sermos poupados das injúrias genéticas e acidentais da vida. O caráter estatístico (e aleatório) da vida parece perceptível aos poucos que não buscam as explicações mais fáceis (e metafísicas) para o que muitas vezes é o simples acaso...
quarta-feira, 1 de julho de 2009
domingo, 28 de junho de 2009
humanidade de assis
    Infelizmente me parece que nascemos com um certa quantidade de passagens machadianas como as do almocreve (palavrinha ainda usada por saramago) ou do Padre Chagas embutidas na nossa programação. Nos imagino porém capazes de transcender a fatalidade do comportamento humano com algo para além do dogma religioso e dos anseios metafísicos tão universais.
Uma passagem cotidiana pode refletir exatamente o tema:
"Terça-feira, daquelas ordinárias, buscando o filho no colégio (sem parar em fila dupla, segundo o pai do pai o único dogma religioso que deveríamos obedecer") e no meio da caminho parar numa esquina como tantas outras da cidade pobre e mutilada. 
Lindo menino no banco de trás, protegido, climatizado, alimentado, ansiado, (mal) educado, encara a realidade de um lindo menino fora do carro, esfarrapado, faminto, de olhos esperançosos que mal alcança o vidro, observado de 'reojo' pela mãe (?) sentada na calçada ao fundo e de cabelos cuidadosamente destruídos. Diálogo (desculpem o plágio da estrutura mas ela funciona).
Filho, porque não dá teu carrinho pro menino, ele iria gostar tanto de um presente assim...
Mas pai esse carrinho é meu! Eu sei, mas tu tens tantos carrinhos, e esse ainda é velho! Mas é meu brinquedo! Mas ele não tem nenhum! Pai, amanhã eu trago outro carrinho pra ele...
Sinal que abre, esperança que se desvanece, alivio machadiano no filho que escapa da partilha e o pai tenta ainda filosoficamente plantar a semente da caridade e do desprendimento que tampouco cultivou mas que com alguns mestres (paulo e alexandre) pretende desenvolver.
Dois dias depois a cena se repete como uma prova de fé na humanidade, mesmo sinal, mesmos personagens, mesmo carrinho em pauta:
Filho, olha o menino de ontem (tempo da cabeça dele), agora é tua chance de dar o carrinho! Mas pai eu não quero dar meu carrinho! Mas cara a gente conversou, tu tem muito carro e disse que iria dar outro dia, o dia é hoje! Não pai, não quero! E agora, ele vai ficar sem nada? Não pai, quando eu chegar em casa (ganhando tempo para que o semáforo o libere de tantas provações urbanas) vou quebrar meu porquinho e dar pra ele 5 'dinheiros'... Olha, eu vou cobrar amanhã, viu? Tá bom pai, vou dar 4 'dinheiros' pra ele... vou quebrar o porco e tirar (pausa pensativa e literária )...3 'dinheiros' e ele vai ficar muito feliz!
Bom, não é preciso comentar que o porquinho continua intacto e recemente o pai descobriu que o dito carrinho, apesar de surrado, tinha nobre origem: fora achado pelo filho, esquecido numa livraria por outro protegido urbano e portanto "aquisição" sua... Motivo mais que eloquente para não tê-lo dado de bandeja à esperança."  
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quinta-feira, 25 de junho de 2009
egoisticamente são

A grande historinha do Almocreve abaixo, das Póstumas Memórias de Machado, são o que de mais humano se pode ler na nossa literatura, quiçá de uma humanidade excessivamente egoísta que, como disse saramago alguns posts atrás, é a única que há. Para nossa sorte ela, em muitas circunstâncias de nossas vidas, é bem mais que isso.
By the way, essa colher de egoísmo bem dosada torna-se um poderoso anti-depressivo (e não absorvi ainda os hífens e não-hífens) que nos faz milimetricamente insensíveis à todas as dores e descaminhos do mundo. Essa carga pode ser dividida entre muitos, afinal ainda temos nossas cruzes pessoais pra carregar.
A unidade dimensional talvez seja a diferença entre a sanidade, a indiferença completa e a desesperança portuguesa.
terça-feira, 23 de junho de 2009
memórias machadianas

Vai então, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, ele deu dois corcovos, depois mais três, enfim mais um, que me sacudiu fora da sela, e com tal desastre, que o pé esquerdo me ficou preso no estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal, mas já então, espantado, disparou pela estrada afora. Digo mal: tentou disparar, e efetivamente deu dois saltos, mas um almocreve, que ali estava, acudiu a tempo de lhe pegar na rédea e detê-lo, não sem esforço nem perigo. Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e pus-me de pé.
       — Olhe do que vosmecê escapou, disse o almocreve.
E era verdade; se o jumento corre por ali fora, contundia-me deveras, e não sei se a morte não estaria no fim do desastre; cabeça partida, uma congestão, qualquer transtorno cá dentro, e lá se me ia a ciência em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo; eu sentia-o no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve! Enquanto eu tornava à consciência de mim mesmo, ele cuidava de consertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar-lhe três moedas de ouro das cinco que trazia comigo; não porque tal fosse o preço da minha vida, — essa era inestimável; mas porque era uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou. Está dito, dou-lhe as três moedas.
    — Pronto, disse ele, apresentando-me a rédea da cavalgadura.
    — Daqui a nada, respondi; deixa-me, que ainda não estou em mim...
    — Ora qual!
    — Pois não é certo que ia morrendo?
    — Se o jumento corre por aí fora, é possível; mas, com a ajuda do Senhor, viu vosmecê que não aconteceu nada.
Fui aos alforjes, tirei um colete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se não era excessiva a gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvez uma. Com efeito, uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre-diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro. Portanto, uma moeda. Tirei-a, via-a reluzir à luz do sol; não a viu o almocreve, porque eu tinha lhe voltado as costas; mas suspeitou-o talvez, entrou a falar ao jumento de um modo significativo; dava-lhe conselhos, dizia-lhe que tomasse juízo, que o “senhor doutor” podia castigá-lo; um monólogo paternal. Valha-me Deus! até ouvi estalar um beijo: era o almocreve que lhe beijava a testa.
     — Olé! exclamei.
     — Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça...
Ri-me, hesitei, meti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do efeito da pratinha. Mas a algumas braças de distância, olhei para trás, o almocreve faziame grandes cortesias, com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez demais. Meti os dedos no bolso do colete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os vinténs que eu devera ter dado ao almocreve, em lugar do cruzado em prata. Porque, enfim, ele não levou em mira nenhuma recompensa ou virtude, cedeu a um impulso natural, ao temperamento, aos hábitos do ofício; acresce que a circunstância de estar, não mais adiante nem mais atrás, mas justamente no ponto do desastre, parecia constituí-lo simples instrumento de Providência; e de um ou de outro modo, o mérito do ato era positivamente nenhum. Fiquei desconsolado com esta reflexão, chamei-me pródigo, lancei o cruzado à conta das minhas dissipações antigas; tive (por que não direi tudo?), tive remorsos...
machadianas
(...) donde se conclui que as catástrofes são úteis, e até necessárias. Sobejam exemplos; mas basta um contozinho que ouvi em criança, e que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona, — um triste molambo de mulher, — chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
     — É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.
     — Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
     O padre que me contou isto certamente emendou o texto original; não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias. Bom padre Chagas! — Chamava-se Chagas. — Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos anos essa idéia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade, — a ponto de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas. Tudo idéias consoladoras. Bom padre Chagas!
segunda-feira, 22 de junho de 2009
saramaguianas
"Quando Marta pede a Jesus que ressuscite Lázaro porém Maria de Magdala diz, Jesus, ninguém têm tantos pecados na vida que mereça morrer duas vezes".
“Bata em um cão e ele irá ganir, corte uma arvore e ela irá chorar, ofenda um homem, ele irá crescer.”
“O tempo não é uma corda que se possa medir de nó a nó. O tempo é uma superfície obliqua e ondulante, onde só a memória é capaz de mover e aproximar”.
“Bata em um cão e ele irá ganir, corte uma arvore e ela irá chorar, ofenda um homem, ele irá crescer.”
"(...) as velhas fotografias enganam muito, dão-nos a ilusão de que estamos vivos nelas, e não é certo, a pessoa para quem estamos a olhar já não existe, e ela, se pudesse ver-nos, não se reconheceria em nós."
“(...) a pele é tudo quanto queremos que os outros vejam de nós, por baixo dela nem nós próprios conseguimos saber quem somos.”
"(...) somos uma pequena e trémula chama que a cada instante ameaça apagar-se (...)"
"é preciso ser Deus para gostar de tanto sangue"
“(...) a pele é tudo quanto queremos que os outros vejam de nós, por baixo dela nem nós próprios conseguimos saber quem somos.”
"(...) somos uma pequena e trémula chama que a cada instante ameaça apagar-se (...)"
"é preciso ser Deus para gostar de tanto sangue"
"Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos."
"Se antes de cada ato nosso nos pusessemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegariamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar"
“Porque ainda está para nascer o primeiro homem desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo, muito mais dura que a primeira, que a tudo sangra.”
"Tolerar a existência do outro e permitir que ele seja diferente ainda é muito pouco. Quando se tolera, apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro."
"Pai, afasta de mim este cálice, Que tu o bebas é a condição para o meu poder e tua glória, Não quero essa glória, Mas eu quero esse poder."
"...dizemos aos confusos, Conhece-te a ti mesmo,como se conhecer-se a si mesmo não fosse a quinta e mais dificultosa operação das aritméticas humanas..."
do monoteismo e as civilizações inexistentes

"Eu precisava que ele fizesse um relatório da administração e moral das províncias orientais, especialmente da Síria e da Judéia. Ambas criavam problemas por razões diferentes, a Síria porque era mal administrada, a Judéia porque era impossível de ser administrada. Seus habitantes, os judeus, são monoteístas intolerantes e intratáveis, que relutam tanto em pagar as taxas romanas quanto em adorar os deuses romanos. Estavam precisando que (...) lhes desse umas bastonadas. É difícil saber como governar os judeus. Tentei governá-los diretamente e tentei governá-los por intermédio de um rei nosso protegido, Herodes. Não gostaram de um bem do outro. A rebelião está sempre fervilhando sob a superfície, pois são fanáticos religiosos que absurdamente acreditam serem o povo escolhido de um único deus. Digo absurdamente por duas razões: a primeira é que não temos motivo para acreditar que exista apenas um deus, e na verdade todas as investigações e observações racionais na História da humanidade indicam que é um contra-senso acreditar nisto. Por que seriam os judeus os únicos a estarem certos? A segunda é que, se fossem realmente um "povo escolhido", era de esperar que tivessem conseguido mais do favoritismo desse deus. O que acontece é que eles vivem brigando entre si numa algazarra de macacos, apertados entre o mar e o deserto. A conclusão inescapável é que a suposição de que contam com a predileção de seu deus é a prova mais ridícula da infinita vaidade humana e da sua capacidade de se iludir."
Texto extraido das "Memórias de Augusto", autobiografia autêntica de próprio punho de Caio Otávio Augusto, primeiro imperador de Roma, encontradas num mosteiro da Macedônia em 1984....
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